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A perversidade pela conquista da paz

 

    Qualquer sociedade ou grupo, para se manter alinhado, necessita de paz entre os seus membros, caso contrário, estaria submetido a uma pressão capaz de minar a união por um propósito, ao levar a um ambiente de desconfiança entre as partes. A paz nunca foi algo barato de se conquistar, e exige de qualquer liderança um compromisso com as virtudes, como a verdade e a honestidade, mas nem sempre os homens querem pagar um alto preço para alcançá-la. É quando decidem lutar pela paz como um dever apenas, mas querer e dever precisam estar presentes pelo bem da coletividade. De outro modo, podemos buscar o dever de viver em paz sem querer a verdadeira paz, e tal dever pode vir até nós por: implicação social, uma vez que o homem é um ser gregário, segundo Aristóteles, e estabelece regras para convívio; implicação cultural, que ocorre quando uma sociedade é capaz de estabelecer através de algum meio, como a a lei, a cultura, a religião ou os costumes, uma tradição de ser pacífica e pacificadora; implicação religiosa, normalmente baseada na ética da autoridade, que tem o poder de exigir a paz entre os seus membros. Contudo, assim como a liberdade não é conquistada de uma vez e para sempre, a paz precisa ser mantida, ou seja, buscamos a manutenção da paz, mas isso envolve um alto custo, principalmente o de tentar viver pacificamente com os opositores.

    Tratar a paz como um dever é algo fundamental, mas não envolver o querer a paz verdadeira é algo perigoso para uma sociedade ou um grupo. Esta paz conserva a liberdade e os direitos individuais, não é alcançada em detrimento de outros, isso é típico de uma falsa paz estabelecida por convenção, algo mais fácil para os homens, porque podem manipular no campo da aparência. Para ter uma suposta paz, podemos criar uma paz qualquer, embora conservemos para todos, rigidamente, o dever de se viver pacificamente com os demais e submissos à liderança, algo que é parte da incumbência de qualquer líder, que pode ser visto como fraco quando não alcança um convívio pacífico, pelo menos entre os seus, ainda que com punhos de ferro atue contra os seus opositores. Em alguma medida, alguém precisa gozar de tranquilidade e sossego, enquanto outros são submetidos à perseguição e ao vexame, típico da demonstração de força que busca silenciar, de maneira dosada, aqueles que criticam as perversidades dos que têm o poder nas mãos e buscam personificar, em alguma medida, o próprio bem. Trata-se de uma paz que suporta os vícios privados dos líderes e de seus aliados, que têm nas mãos a autoridade, e podem orientar publicamente a se viver em paz, ainda que, no privado, não estejam comprometidos em agir com verdade, porque entenderam que a função que desempenham está sob forte exigência de uma autoridade ou da lei, algo que o ofício naturalmente exige. Porém, fazer isso sem estar em conformidade com às virtudes é perigoso, mas os homens insistem em repetir isso em demasia.

    Qualquer paz, por ser uma realidade social, só pode ser conquistada coletivamente. No que diz respeito a uma falsa paz, estabelecida como verdadeira por convenção social, alguns precisam ser dobrados, o que não é difícil de se alcançar com aqueles que buscam, a todo custo, reconhecimento, e os mais inexperientes podem ser seduzidos por privilégios e posições de destaque. Outro meio bastante comum para formar um conchavo, que se voltará contra si mesmo em momentos de forte pressão ou quando a divindade vem em oposição, é por meio de favores, que na sua forma mais ardilosa envolve ocultar a perversidade de outros em segredo como um favor, algo que se desenvolve progressiva e mutuamente em uma sociedade ou grupo até que, sistematicamente, a corrupção esteja estabelecida. Com um grupo fortalecido por meio da exploração das fraquezas dos homens e de seus desejos por viver tais fraquezas, não é difícil criar um ambiente em que alguns se sentem intocáveis, principalmente porque conservam entre si a sensação de que a divindade está do lado deles contra a verdade, ou que ela é tão descomprometida ao ponto de estar mais comprometida em limpar suas sujeiras e atuar em favor deles contra os mais simples por quem, contra os abusos de poder dos líderes, de fato, atua pela liberdade.

    Mas ainda há um grande desafio a ser dobrado: os rebeldes, os opositores, os críticos do sistema, aqueles que se voltam contra o erro sistemático. Eles serão, obviamente, vistos como inimigos, detratores, malfeitores, criminosos, insolentes, corruptores de jovens, dignos de ter a reputação assassinada. Esse é o grande problema da conquista da paz como um dever, porque que não está comprometido em querer a verdadeira paz, naturalmente vinculada às virtudes. Uma paz utópica faz uso do desejo do povo de não querer viver dias de conflito e de dor, de agonia e de tristeza, de guerra e de sofrimento, capazes de nos fazer perder anos de vida, ainda que por uma luta que entendemos ser necessária. Nesse ambiente de convenção social, aqueles caricaturados como inimigos do bem e rebeldes são presas de uma mente generalizada, que assassina os opositores em praça pública pela paz da comunidade. É o mal banalizado, a saber, que virou comum, de acordo com Hannah Arendt, em que se mata o outro por estar convicto de que é inferior, um rebelde indigno de pisar o chão da Terra, escória do mundo. É quando o mal se torna um instrumento do bem e da paz.

    A paz não pode ser vivida ou mantida quando não há um comprometimento dos líderes, que muitas vezes estão dispostos a conquistá-la, ainda que pelo uso da força, mas corruptos e perversos, agem em segredo para assassinar seus opositores e críticos. Essa é uma paz sofista, uma convenção social, em que vale mais o poder e a imagem de que sob os domínios da liderança reinou a unidade, mas atrás das paredes, nos lugares sombrios, também reinaram a imoralidade e a corrupção, sistematicamente. Nesse contexto de suposta paz, de virtudes fracas e moral frouxa, obviamente, os maus são ovacionados no poder, em uma luta para serem vistos e lembrados como os instrumentos usados pelo bem para trazer dias melhores para o povo. Sem uma liderança que também quer a verdadeira paz, não podemos tê-la, porque a paz está comprometida com a verdade, e a crítica e a oposição serão sempre instrumentos importantes para o progresso da liberdade em um ambiente de abuso de poder.

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